quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
 Tempo de absoluta depuração.
 Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
 E os olhos não choram.
 E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
 E o coração está seco.
 Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
 Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
 És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
 As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda.
 Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

           Carlos Drummond de Andrade

       

Quadrilha


João amava Teresa
que amava Raimundo
que amava Maria
que amava Joaquim
que amava Lili
 que não amava ninguém.

 João foi para os Estados Unidos,
Teresa para o convento,
 Raimundo morreu de desastre,
 Maria ficou para tia,
 Joaquim suicidou-se

e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

   Carlos Drummond de Andrade

As sem razões do amor


Eu te amo porque te amo,
 Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo.
 Eu te amo porque te amo.
 Amor é estado de graça e com amor não se paga.
Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse.
 Amor foge a dicionários e a regulamentos vários.
 Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim.
 Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama.
 Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo.
 Amor é primo da morte, e da morte vencedor,
 Por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor.

       Carlos Drummond de Andrade

Tudo o que faço ou medite


Tudo o que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúdica e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---

Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

      Fernando Pessoa

Autopsicografia


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda,
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

     Fernando Pessoa